segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Primeira Carta



"Raul,
  Sei bem do que você vai me chamar. Louca. Não será a primeira vez, mas agora talvez tenha um motivo, basta que leia esta carta até o fim. De louca você me acusará e tem a prova nas mãos. Tive um sonho esta noite. Eu caminhava entre uma multidão e, na direção contrária, vinha um homem. Ele trazia uma mochila nas costas. Nossos olhos se cruzaram e eu tive certeza de que era ele. Que seria meu. Que era o amor que eu guardava. Tinha um rosto familiar. Era o irmão de uma amiga da adolescência. Eu vi o irmão dessa garota apenas uma vez na vida, aos 15 anos. Não entendo, nunca troquei palavra com esse cara, nunca mais o vi depois dos 15 anos, nem de perto, nem de longe.
  Não sei se hoje é casado, gay, bispo, em que país vive, e se vive ainda. Lembro apenas do seu nome. João. Eu e João trocamos um olhar penetrante no meu sonho, então ele passou por mim, e eu por ele, cada um no seu caminho. Alguns passos adiante, virei para trás, olhei, ele estava olhando também, mas nenhum de nós parou. Até que percebi que estava com a mochila dele em minhas mãos e minha bolsa havia sumido. Voltei correndo para procurar minha bolsa, e para procurá-lo. O ambiente parecia uma estação rodoviária. Cruzamos outra vez. Ele estava com a mochila dele. E minha bolsa estava comigo. Sonhos são desse jeito.
  Dali em diante, não nos desgrudamos mais. Ele me pegou pela mão, me levou para algum lugar. As mãos dele nas minhas. Como se já fôssemos namorados. Antes de qualquer palavra. Então eu disse a ele – e foi a única coisa dita: se isso tudo acabar agora, vai ter valido a minha vida. E o beijei. Dormindo, senti aquele beijo como se João estivesse inteiro dentro da minha boca. Foi um beijo cheio. Longo. Delicioso. Um beijo enorme, um beijo doce. Quente. Sexy. Meu corpo reagiu, fiquei excitada, nesse instante houve uma fusão entre sonho e realidade, enquanto o beijava eu pensava: não acorde, não acorde. Mas esse breve instante de consciência me despertou. E eu já não era a mesma. Raul, foi só um sonho. Mas com uma carga de certeza que me perturba e dói. Eu sou aquela mulher do sonho, atrás de um amor, encontrando um amor, e o perdendo para a minha rotina matinal: acordar, tomar banho, levar as crianças ao colégio, trabalhar, almoçar, morrer. Eu vou atrás dele, Raul. Não vou fazer terapia, não vou me afogar em uísque, não vou descontar minhas frustrações em você, não vou comprar roupa nova, não vou cortar o cabelo, não vou tomar remédio para dormir, não vou esperar as crianças crescerem. Eu vou atrás dele. Desse homem que nunca conheci de fato, mas que existe de outra forma, que existe com outro rosto e outro nome, que existe no meu futuro, se o futuro eu permitir que aconteça. Não quero mais o presente, não quero mais a paralisia, o pra sempre. Alguém espera por mim. Alguém não vê a hora de eu chegar. Eu não vejo essa hora. Daqui, não alcanço esse sonho. Eu me vou. Eu irei atrás do meu instante."
in Primeira carta de "Tudo que eu queria te dizer", Martha Medeiros.

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