quinta-feira, 26 de abril de 2012

Espetacular, Shame...

É a primeira obra-prima de 2012
Por Renan Andrade

   O grande Nelson Rodrigues um dia disse que “se todos conhecessem a intimidade sexual uns dos outros, ninguém cumprimentaria ninguém“. O que de tão engraçado tem nessa frase, tem também de degradante. E é sobre isso que o filmaço Shame se debruça: o sexo como lente de aumento para a degradação de um indivíduo.
Um dos filmes mais impactantes dos últimos anos, Shame é a mais nova nova colaboração entre o diretor inglês Steve McQueen e o ator Michael Fassbender, que trabalharam juntos no marcante Hunger. No filme, o personagem principal, Brandon Sullivan, sofre de erotomania, um distúrbio psicológico que gera compulsão pelo ato sexual. Ele pensa constantemente no orgasmo, dedicando-se à busca por uma transa assim como um desenfreado ato de masturbação, contrata prostitutas ou visita chats pornográficos. O prazer aqui é de um sadismo que se explica em sua obsessão.
Brandon (Fassbender) é um protagonista maduro, bem-sucedido profissionalmente e solitário. Seu mundo é cinza, tedioso e sem grande novidades para além da fixação sexual. Não sabemos muito sobre seu passado ou sobre possíveis justificativas Freudianas. Com a repentina chegada de sua irmã (Carey Mulligan, maravilhosa) ele entra em conflito com aquilo que mais evita, a intimidade e pessoalidade que um passado e um ponto familiar podem trazer (há apenas uma lacônica citação de sua irmã que diz “não somos pessoas ruins, apenas viemos de um lugar ruim”).
Escrito pelo diretor , com a roteirista Abi Morgan, Shame fala sobre a vergonha. Não a vergonha previsível que à primeira vista, a frase de Nelson Rodrigues aponta, mas sim para vergonha pessoal diante de uma degradação psíquica que só aparece pelos extremos do sexo. A fuga de ligações emocionais é justamente para escamotear isso, afinal, quando nos entregamos aos extremos perdemos mesmo o juízo de valor das coisas, das pessoas e nós mesmos. E é dentro dessa falta de noção que ele esconde a falta de emoção. Por isso que a chegada de sua irmã (numa cena antológica em que canta de forma original a clássica New York, New York, o cineasta nos diz tudo sobre todos sem se valer de praticamente nada) estabelece não só um contraponto a vida ordinária dele, como também uma radiografia de seus anseios íntimos e que tanto evita expor. Com o auxílio de uma fotografia que desnuda a New York glamourizada dos ideários, essa sensação de desolação vai nos parecendo tão comum nos grandes centros, tão existente em pessoas que conhecemos, tão verossímil, talvez a nós mesmos.
O cineasta é conhecido por seu trabalho nas artes visuais, e isso fica claro em no verdadeiro trabalho de artesão que ele imprime em suas imagens. Não é só maquiagem ou plástica estética banal. Tem um embasamento com o universo deprimente que procura emoldurar. Assim como sua ótima trilha, que pauta a dor e o prazer pela convergência melódica de sua placidez. Fora que, para dignificar as intensas e múltiplas cenas de sexo, só com uma boa dose de acabamento e justificação.
Michael Fassbender se entrega totalmente para o papel, e digo isso para além das cenas de nudez. Uma cena de catarse dramática sob a chuva é uma das mais expostas que já vi, num trabalho de ator, principalmente pela dimensão que aquela cena representa tanto para o personagem quanto para o filme em si. E ele a faz com tamanha propriedade que me pergunto o porquê de não ter sido indicado ao Oscar de Melhor Ator. O próprio filme – devido ao delicado tema e as cenas fortes, que espantam os octogenários da Academia de Hollywood – deveria estar entre os indicados, e ainda digo que é melhor do que TODOS os indicados, dada a contundência com que trata do tem, a sensibilidade com que desnuda um indivíduo e seu meio e a capacidade em nos deixar tão perturbados com a condição humana.
Ao começar a falar do filme eu citei aquela frase de Nelson justamente por evocar sua contradição. Ao olhar para lado, não resolvemos a visão que temos de nós mesmo, e muitas vezes ela pode ser tão degradante quanto. McQueen sabe disso e usa o verbo expor para potencializar uma reflexão, seja pelo nervosismo do sexo na tela, seja pela inquietação da tentativa de compreensão do que está em volta dele. Shame é um filme obrigatório, até mesmo para os que o vão odiar, mas, assim como o personagem principal, não vai dar para passar por ele indiferente pois nossa apatia será corroída pela perplexidade de como o extremo pode ser tão humano.



Fonte: http://ambrosia.virgula.uol.com.br/espetacular-shame-e-a-primeira-obra-prima-de-2012/

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