Por Carolina Bergier
Já foi normal duas pessoas se digladiarem até a morte para
entreter a multidão. Também já foi normal queimar mulheres na fogueira por
bruxaria e fazer pessoas trabalharem sem remuneração com direito a castigos
físicos só pela cor da pele. Era normal também humanos se alimentarem de sua
própria espécie e casarem sem amor. Já foi normal passar 40 horas da semana
fazendo algo que se detesta, mentir para ganhar dinheiro e devastar florestas
inteiras em busca de um suposto desenvolvimento. Peraí, este último ainda é
normal. Afinal, será que ser normal – e achar normais coisas que não deveriam
ser – pode ser uma doença?
Segundo alguns psicólogos, sim. A doença de ser normal
chama-se, segundo eles, normose: um conjunto de hábitos considerados normais
pelo consenso social que, na realidade, são patogênicos em graus distintos e
nos levam à infelicidade, à doença e à perda de sentido na vida.
O conceito foi cunhado quase que simultaneamente pelo
psicólogo e antropólogo brasileiro Roberto Crema e pelo filósofo, psicólogo e
teólogo francês Jean-Ives Leloup, na década de 1980. Eles vinham trabalhando o
tema separadamente até que um terceiro psicólogo, o francês Pierre Weil, se deu
conta da coincidência. Perplexo, Weil conectou os dois, e os três juntos
organizaram um simpósio sobre o tema em Brasília, uma década atrás. Do
encontro, nasceu uma parceria e o livro Normose: A patologia da normalidade.
No fim dos anos 70, Crema estava encucado com o fato de
muitos autores apontarem uma “patologia da pequenez”: o medo de se deixar ser
em sua totalidade. Ele deparou-se com muitos pensadores, entre eles o alemão
Erich Fromm (1900-1980), que falava do medo da liberdade, e o suíço Carl Jung
(1875-1961), que afirmava que só os medíocres aspiram à normalidade. Crema
misturou ao caldo a célebre declaração do escritor britânico G.K. Chesterton
(1874-1936), que disse que “louco é quem perdeu tudo, exceto a razão”, e
acrescentou os anos de observação e prática em sua clínica pedagógica.
Assim nasceu o conceito de normose, que, segundo ele,
“ocorre quando o contexto social que nos envolve caracteriza-se por um
desequilíbrio crônico e predominante”. A normose torna-se epidêmica em períodos
históricos de grandes transições culturais – quando o que era normal
subitamente passa a parecer absurdo, ou até desumano. Foi o que aconteceu no
final do período romano, em relação à perseguição de cristãos, ou no início da
Idade Moderna, com o fim da legitimidade da Santa Inquisição, ou no século 19,
com a perda de sustentação moral da escravidão. E, segundo Crema, Leloup e
Weil, é o que está acontecendo de novo, com a crise dos nossos sistemas de produção,
trabalho e valores.
“O novo modelo é ainda embrionário, e os visionários dessa
possibilidade de sociedade não-normótica ainda são minoria”, diz Crema.
Enquanto a maioria de nós se adapta a um ambiente social doente, quem resiste à
normose acaba considerado desajustado, por não obedecer ao estado “normal” das
coisas.
Como aquele cara que, mesmo ganhando o suficiente para
fornecer educação, moradia e alimentação para si e seus filhos, é considerado
vagabundo e louco por, em plena quarta-feira ensolarada, liberar as crianças da
aula e levá-las à praia. Mas como? Em dia de semana? As crianças vão faltar
aula? Pois é. De repente, ele acha que um dia na natureza vai fazer mais bem a
seus filhos do que horas sentados em sala de aula. Será que ele não é saudável,
e doentes estão os outros?
Desnormotização
Para a filósofa Dulce Magalhães, que escreve sobre mudanças
de paradigmas, o normótico acredita que geração de renda e falta de tempo para
si ou para a família são indissociáveis. “As pessoas consideram que trabalhar
muitas horas, colocar em risco sua saúde e suas relações é normal”, diz ela.
“Mas isso tem um custo pessoal e social alto demais, que acabam levando a
problemas de saúde pública e violência, por exemplo.”
Dulce acha que a cura para a normose está em mudarmos de
modo mental, abandonando o modelo da escassez, que hoje rege o mundo, e
abraçando o da abundância. Ela explica: “Desde a infância, aprendemos que o que
vem fácil vai fácil e que, se a vida não for difícil, não é digna. Precisamos
mudar isso e entender que esforço não é tarefa.” Quantos de nós chegamos em
casa reclamando para mostrarmos (a nós mesmos e aos outros) que trabalhamos
muito e tivemos um dia duro, como se isso trouxesse algum tipo de mérito?
Segundo Crema, cada um de nós tem talentos diversos, mas “o
normótico padece de falta de empenho em fazer florescer seus dons e enterra
seus talentos com medo da própria grandeza, fugindo da sua missão individual e
intransferível”. “Quando temos necessidade de, a todo custo, ser como os
outros, não escutamos nossa própria vocação”, acredita.
O carioca Eduardo Marinho, hoje com 50 anos, percebeu cedo
que não queria ser como os outros. Filho de militar, abriu mão de sua condição
financeira e de sua faculdade ao se dar conta, aos 18 anos, que não queria
olhar para sua vida quando velho e pensar que não tinha feito nada relevante.
“Não queria ser bem-sucedido e me sentir fracassado”. Eduardo saiu pelo País
pedindo abrigo e comida em troca de favores e buscando algo que o preenchesse.
Depois de passar por poucas e não tão boas pelo Brasil, deu voz a sua vocação.
Hoje é artista plástico.
Ele acredita que a desnormotização se inicia dentro de cada
um: “Que tal olhar para dentro de si mesmo? É aí que começa a revolução”,
sugere. Claro que, para isso, não é mandatório dormir nas ruas. Fazer o trajeto
que Eduardo escolheu para si pode ser perigoso e não há nenhuma garantia de
sucesso.
Bug cerebral
A cura da normose é trabalho individual, mas alguns esforços
sociais podem ajudar. Para começar, seria um adianto se tivéssemos um novo
modelo educacional. A escola poderia ser o lugar onde as crianças descobrem
suas verdadeiras vocações – em vez de tentar padronizar os alunos e
convencê-los a serem normais.
Mundo afora, estão surgindo escolas com uma nova lógica,
como a Escola da Ponte, em Portugal. A instituição não segue um sistema baseado
em séries, e os professores não são responsáveis por uma disciplina ou por
turmas específicas. As crianças e os adolescentes que lá estudam definem quais
são suas áreas de interesse e desenvolvem seus próprios projetos de pesquisa,
tanto em grupo como individuais.
Algo similar parece estar acontecendo no mundo empresarial,
onde mais e mais empreendimentos estão dando voz à liberdade individual. O caso
clássico, sempre citado, é o do Google, cuja sede, em Mountain View, na Califórnia,
conta com salas de jogos, videogames, espaços ao ar livre e tempo reservado
para que cada funcionário desenvolva seus próprios projetos para a empresa, com
total autonomia.
Claro que não há vagas para todos nós no Google nem para
todos os nossos filhos na Escola da Ponte. A cura da normose não vai ser
resultado de uma ou outra iniciativa isolada – ela só vai ser possível quando
houver no mundo gente suficiente disposta a questionar tudo o que achamos
normal.
E talvez isso demore anos para acontecer. A explicação para
isso pode estar num bug que todos carregamos no cérebro, que tem uma tendência
de recusar sempre novos jeitos de olhar o mundo. É o que explica o psicólogo
israelense Daniel Kahneman, ganhador do Prêmio Nobel de Economia de 2002, em
seu livro Rápido e Devagar: Duas formas de pensar. Segundo ele, nosso cérebro
confunde o que é familiar com o que é correto: ao ver ou sentir algo que
desperta alguma memória, o cérebro define aquele “familiar” como “correto”, da
mesma maneira que o novo é decodificado como passível de desconfiança.
Esse sistema foi muito útil para nossos antepassados homens
das cavernas, que não podiam mesmo sair comendo qualquer frutinha nova que
aparecesse à sua frente. Mas, nos dias de hoje, que exigem novas ideias para
lidar com um mundo em mudança constante, esse mecanismo cerebral virou um
entrave à inovação. Segundo essa tese, a normose não é uma doença: é uma
característica humana, moldada pela evolução. Ou seja, talvez ser normótico
seja normal.
Para saber mais
Normose: A patologia da normalidade
Jean-Yves Leloup, Pierre Weil e Roberto Crema, Verus, 2003
Jean-Yves Leloup, Pierre Weil e Roberto Crema, Verus, 2003
Rápido e Devagar: Duas formas de pensar
Daniel Kahneman, Objetiva, 2012
Daniel Kahneman, Objetiva, 2012
Fonte: Revista Superinteressante
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